As madeiras brasileiras ganham espaço
no processo de envelhecimento das indústrias de bebidas do país. Vinícolas, cervejarias e alambiques utilizam barris e dornas que possam agregar um diferencial para seus produtos
Por Carlos Donizete Parra
A relação bebida e madeira já existe a alguns milênios. No início, essa relação nada tinha a ver com envelhecimento da bebida. A embalagem servia de meio de conservação e transporte, antes do surgimento das garrafas. Com o tempo, porém, os usuários e produtores passaram a perceber como a bebida evoluía em contato com os diferentes materiais e até hoje usam isso como uma forma de influenciar sabores, aromas e estrutura da bebida, seja ela um destilado ou fermentado.
A madeira mais utilizada e conhecida no mundo para envelhecimento de bebidas é o carvalho (americano ou francês). São mais de 250 espécies de carvalho e vasto material de estudo sobre suas características e sobre os resultados que ele transfere para as bebidas. “O Carvalho é talvez a madeira com utilização mais antiga no Ocidente para armazenamento de bebidas, o que faz dessa madeira uma referência mundial. Suas características sensoriais já eram apreciadas na Europa, o que levou esses barris com suas bebidas para todos os portos do mundo nos tempos dos descobrimentos. Não podemos ignorar a influência de corsários ingleses e franceses que saiam dos seus portos com Whisky e Conhaque, reabasteciam nas Antilhas com Rum e na costa brasileira com a então Aguardente da Terra que hoje conhecemos como Cachaça, existem relatos dessas viagens e desses reabastecimentos. Não se enfrentava os mares revoltos sem bebida a bordo e os barris eram artigos básicos de qualquer embarcação. Como eram os primeiros recipientes feitos pelas tanoarias das Metrópoles a serem vistos e adquiridos no Novo Mundo, são até hoje considerados modelos no processo de maturação de uma boa bebida e cá entre nós, quase todas as bebidas podem ficar fantásticas ao serem bem maturadas em um desses barris”, explica Haroldo Narciso, diretor da Famigerada Cachaça.
O segmento de cervejas artesanais vem, nos últimos anos, investindo na produção de cervejas envelhecidas em barris de madeira. Premiada como a Melhor Cervejaria do Brasil na última edição do Concurso Brasileiro de Cerveja de Blumenau, a Alem Bier possui dez cervejas envelhecidas em barris que também já receberam premiações nacionais e internacionais. A empresa se tornou referência brasileira nesse tipo de cerveja. Todos esses produtos foram envelhecidos em barris de carvalho francês e americano. Segundo Carlo Mioranza, Diretor responsável pela produção dessas cervejas, o Carvalho Americano tem a tendência de maior presença de sabor de madeira e notas de frutas, coco e baunilha.
“Já o Carvalho Francês tem maior porosidade, menor presença de madeira, e notas mais presentes de pão torrado, chocolate e cacau,”explica o cervejeiro da Alem Bier, observando ainda que para garantir a qualidade de cervejas envelhecidas em barris de madeira é essencial tomar muito cuidado com a temperatura pois a acetobater se prolifera com as temperaturas mais altas. “Oxigênio também deve ser evitado, por isso as barricas devem estar sempre cheias e devidamente testadas”, garante Carlo Mioranza.
Armazenamento e envelhecimento
Os processos de armazenagem e envelhecimento de bebidas em barris ou dornas de madeira têm a capacidade de modificar as características desses produtos seja intencionalmente ou não. Essas mudanças dependerão de fatores, como:
• Tamanho do barril
• Tipo de madeira
• Período de envelhecimento
• Temperatura e umidade do local
• Condições ambientais
• Composição da bebida a ser envelhecida
• Teor alcoólico da bebida, entre outros.
A cachaça é a bebida brasileira que mais vem se utilizando desse processo de envelhecimento em sua produção. Isso já acontece desde a colonização do país e, por conta disso, já temos diversos produtos no mercado com resultados bem satisfatórios. A bebida envelhecida é a bebida que ficou em contato com a madeira durante um determinado período e, no caso dos destilados, por causa de seu maior teor alcoólico, consegue mudanças muito interessantes na estrutura química e sensorial da bebida. Os vinhos e as cervejas também utilizam essa técnica para agregar características diferenciadas aos produtos. Cada bebida é única e, portanto, terá resultados diferentes, de acordo com suas características e dos fatores de envelhecimento que citamos acima, incluindo no caso dos fermentados os aspectos microbiológicos.
Durante o envelhecimento, o álcool extrai compostos da madeira que modificam a bebida, sendo que o objetivo final deve ser o equilíbrio desse perfil sensorial entregando ao consumidor um produto diferenciado.
O barril de madeira
O barril de madeira é uma embalagem ativa onde ocorrem reações como a oxigenação e a oxidação. No caso da oxidação é necessário um controle eficaz para que não cause efeitos negativos à bebida. O processo de fabricação dos barris, assim como a madeira utilizada são de suma importância para o resultado final da bebida. O processo de fabricação pode ser resumido em 7 passos:
1. Seleção e corte das madeiras. Depois ficam expostas ao ar livre para secagem por um tempo acima de 12 meses, podendo chegar a 24 meses ou mais dependendo da madeira;
2. As tábuas são serradas e transformadas em aduelas;
3. Usinagem;
4. Curvamento;
5. Tratamento térmico onde é definido o grau de tosta do barril (leve, moderado ou alto);
6. Fechamento
7. Acabamento e testes.
Para Mauro Mezacasa, Diretor da Tanoaria Mezacasa, o que pode limitar a produção de barris em determinada madeira é a altura e a espessura da tábua. “Por exemplo, tabuas de 1,50 de comprimento com espessura de 4cm podemos fabricar tonéis de 700 a 1000 Litros. Para tanques maiores precisamos de tábuas mais compridas e mais grossas. Entretanto, considerando o uso para envelhecimento de bebidas como cachaça o volume máximo permitido é de 700 litros. Então o que temos hoje é suficiente para atender a demanda do mercado” garante Mauro Mezacasa.
Para cachaças, o tamanho padrão de barris para envelhecimento de bebidas é de 225/250 litros podendo chegar a até 700 litros.
Madeiras brasileiras
O Brasil possui diversas espécies de madeiras já utilizadas para bebidas, entre elas as mais conhecidas são a Amburana, Bálsamo, Amendoim, Jequitibá, Pereira, Grápia, Freijó e Castanheira.
As madeiras brasileiras oferecem aromas e características distintas às bebidas, por isso a importância de serem cada vez mais testadas e utilizadas por nossas indústrias. Com certeza são diferenciais que vão agregar valor e competitividade aos produtos. Outros pontos positivos a se destacar na utilização de madeiras brasileiras são o custo mais atrativo, sensorial diferenciado, sustentabilidade (desde que a madeira seja certificada, é claro), valorização do produto nacional, opções para explorar novos produtos com criatividade.
Castanheira certificada é uma nova opção para produção de barris
A castanheira (Bertholletia excelsa) é uma árvore nativa da Floresta Amazônica, conhecida dos brasileiros, principalmente, pelo seu fruto: a castanha.
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A madeira da castanheira-do-Brasil é conhecida como o “carvalho brasileiro” e, historicamente, utilizada na tanoaria mundial.
A qualidade e propriedades da madeira de castanheira são apropriadas para produzir barris para o envelhecimento de cachaça, vinho, e cerveja, sendo bastante demandada pelas tanoarias. Hoje, é possível comprar madeira de castanheira proveniente de árvores plantadas e com DOF legal disponibilizadas pela Fazenda Aruanã, localizada na região de Itacoatiara, no Amazonas. A empresa possui um castanhal plantado de 1 milhão de árvores e fornece madeira de castanheira cortada de acordo com as medidas desejadas pelas tanoarias. “O barril de carvalho é o mais utilizado no Brasil porque a madeira legal de castanheira-do-Brasil não tem produção. É proibido cortar castanheiras.
Atualmente, só é disponível a madeira de castanheira nos plantios da Fazenda Aruanã porque são plantios aprovados pelos órgãos ambientais” explica Sergio Vergueiro, Diretor da Fazenda Aruanã.
A castanheira não pode ser cortada a não ser com autorização dos órgãos ambientais reguladores segundo condições específicas. A castanheira tem cerca de 70 metros de altura e demora 150 anos para atingir sua maturidade. Seguindo as condições ideais de fabricação, os barris de castanheira podem durar 30/40 anos, oferecendo à bebida coloração clara com aromas e sabores adocicados, frutados e bastante característicos de seu fruto.”O que mais destaca a castanheira do carvalho é que a castanheira tem maior sabor e aroma de castanha e tem mais dulçor ou tanto quanto o carvalho. Isso é um ponto alto da castanheira. Comparado com o carvalho as notas de especiarias são parecidas e o frutado também. Portanto, são madeiras que se equiparam. Já houveram ensaios de castanheira competindo com o carvalho e a castanheira teve muito bom desempenho, inclusive para o uso para vinhos”, garante Edson Martins, Diretor da Tanoaria Dornas Havana.
Para Haroldo Narciso da Famigerada Cachaça, a Castanheira é uma madeira que adiciona à cachaça dulçor e amargor com um toque amadeirado e frutado, no aroma caramelo e frutas vermelhas. “Seu processo de maturação é lento e o barril precisa ser trabalhado com persistência até alcançar o equilíbrio pois pode tender aos tons amargos e a uma adstringência exagerada na primeira maturação.
Quando bem envelhecida, a Castanheira apresenta características um pouco semelhantes ao seu arquétipo o Carvalho, razão pela qual já foi apelidada de Carvalho Brasileiro. Mas não devemos reduzi-la a isso pois tem elementos próprios e singulares, o que pode proporcionar uma outra bebida com características bem impactantes”, assegura Haroldo.
Opções não faltam
As opções de madeira para incentivar a criatividade de fabricantes de bebidas não faltam. São dezenas de madeiras à disposição para testes e aplicações diversas. Madeiras nativas de florestas do norte ao sul do Brasil com características distintas que oferecem sabores e aromas variados e oriundos de seus biomas. Acompanhe as descrições sensoriais de algumas dessas madeiras e aproveite para dar luz à sua criatividade e produzir bebidas de impacto no mercado:
Amburana ou Cerejeira (Amburana cearensis)
Cor dourada ou âmbar cristalino em tonéis de baixo volume (200 litros), após um ano. Em dorna de grande volume apresenta cor amarelo-pálido. Aromas e sabores de baunilha, cravo, canela e outras especiarias, dependendo do volume, tempo de maturação e se o barril passou ou não por tosta.
Bálsamo ou Cabreúva (Myrocarpus frondosus)
Em barris novos chega em tons âmbar-avermelhados e sabores amadeirado e vegetal. Nas cachaças envelhecidas por muitos anos em tonéis antigos e de grande volume, à cachaça assume uma cor dourada com tons esverdeados e aromas intensos, trazendo notas herbáceas e de especiarias, como anis, cravo e erva-doce, e também a sensação de picância e adstringência ao destilado.
Jequitibá-rosa (Cariniana legalis)
Cor, aromas e sabores pronunciados ao destilado se envelhecido em barris de pequeno porte. Pela presença de vanilina, que agrega notas de baunilha à cachaça, se assemelha ao carvalho americano.
Ariribá (Centrolobium tomentosum)
Cor amarelo-pálido e leve buquê de flores e vegetal. Quando tostada traz aromas de frutas vermelhas (morango). É uma das madeiras que mais confere oleosidade ao destilado por ser rica em glicerol, componente natural desejável.
Carvalho Europeu (Quercus petraea)
Diferente do carvalho americano (Quercus alba). Cores que vão do amarelo-pálido ao mogno e aromas mais sutis e temperados, lembrando amêndoa, e adocicados, contribuindo com textura e adstringência.
Amburana (Amburana acreana)
Muito marcante, a amburana em poucos dias já aporta características sensoriais. É uma madeira muito perfumada (baunilha, canela), oferecendo aromas florais (flores brancas) e amadeirados – é necessário atenção para a intensidade não comprometer o equilíbrio sensorial.
Castanheira (Bertholletia excelsa)
A castanheira é conhecida popularmente como “o carvalho brasileiro” por ser rica em vanilina, trazendo aromas associados a junção do tostado com baunilha, chocolate e caramelo. Após tosta reduz também sua intensidade vegetal de madeira nova e enriquece a percepção sensorial de castanhas.
Cumaru (Dipteryx Odorata)
Rico em cumarina, encontrada em diversas plantas como a erva-doce e guaco. Seu aroma remete a baunilha com bastante intensidade. Por isso, a cumarina é amplamente usada na indústria de cosméticos e aromatizantes. O cumaru é de dulçor e especiaria elevados e resinosidade mediana.
Eucalipto (Eucalyptus)
O eucalipto não é uma árvore nativa, mas se adaptou muito bem no Brasil. Vinda da Oceania, o eucalipto tem muitas espécies distintas e nem todas são adequadas para o envelhecimento de bebidas. Quando utilizada a espécie correta e com o tratamento devido o Eucalipto se aproxima das características sensoriais do carvalho europeu.
Ipê (Handroanthus)
A tosta e tratamento são necessários para fazer do ipê uma madeira ideal para tanoaria, entregando maciez, diminuindo a intensidade tânica e aumentando dulçor. A madeira entrega sabores associados a nozes e castanhas.
Jaqueira (Artocarpus heterophyllus)
Conhecida popularmente como fruta pão e usada para fazer doces, compotas, geléias, vem sendo usada para produção de barris para envelhecer bebidas, especialmente cachaça. A madeira traz doçura intensa acompanhada de especiarias.
Jequitibá (Cariniana micrantha)
Existem algumas espécies distintas de jequitibá utilizadas para armazenamento e envelhecimento de cachaça. A Cariniana legallis, conhecida como jequitibá-rosa, é uma árvore típica da Mata Atlântica com características sensoriais distintas de outros jequitibás encontrados pelo Brasil. A Cariniana micrantha, conhecido popularmente como castanha-de-macaco é uma árvore da floresta Amazônica. A madeira é considerada neutra, contribuindo para a bebida se tornar mais leve e agradável. Quando tostado, o jequitibá contribuí com elementos vanílicos que intensificam o dulçor da bebida.
Referências
• O envelhecimento em madeira enriquece a bebida com novos aromas e sabores, Michael Trommer, Revista Engarrafador Moderno.
• Madeiras para envelhecimento da cachaça, Felipe Jannuzzi, Mapa da Cachaça.
• Perfil de madeiras brasileiras e o envelhecimento de cervejas, Aline Bortoletto, Science of Beer webinar.
• Entrevistas com empresas do setor.
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