As técnicas de brassagem passaram por muitas transformações
ao longo das últimas décadas em virtude de novas tecnologias
de equipamentos e também da melhoria da qualidade do malte utilizado
Alexander Schwarz
Em nossas palestras nos últimos anos, em eventos que a Agrária organizou ou participou, apresentamos sempre a evolução do melhoramento genético da cevada e das evoluções nas técnicas de malteação que facilitaram muito a vida do cervejeiro na sala de brasagem. Hoje, as rampas de mostura são bastante reduzidas e os rendimentos são altos, mas isso nem sempre foi assim. Os maltes antigos normalmente se apresentavam bastante inomogêneos, ou seja, com diferentes níveis de solubilização, diferenças significativas de cor e rendimentos.
Resgatamos no acervo bibliográfico da Agrária, livros muito antigos, o mais antigo datando de 1884, que relatam técnicas interessantes para atingimento dos rendimentos mínimos necessários na época. Obviamente que estas técnicas entraram em desuso pela complexidade e custo. Como estamos num momento cervejeiro no Brasil que, vem resgatando estilos e técnicas antigas, achamos oportuna esta contribuição, na verdade nos deliciamos com esta leitura deveras interessante…
Pré Digerir o Malte
Uma técnica interessante que ocorria na arriada do malte, principalmente na Baviera pelo uso de maltes com secagem mais intensa (Malte Munique). Lembrando que arriada é o termo técnico que se refere à homogeneização de malte moído com água que pode durar de 10 a 35 minutos. Esta arriada no passado já foi separada do processo de mostura em si através de um processo chamado em alemão de Digeriren (Digerir). É na verdade, uma pré-maceração do malte moído antes de iniciar a mostura. O malte moído era macerado com água fria de 8 a 12 horas o que permitia a solubilização das enzimas cuja concentração era bastante baixa nestes maltes. A pré-digestão, muito usada no passado, permitia o ganho de extrato que estava muito atrelado à qualidade do malte, qualidade da moagem, tempo e temperatura da maceração.
A recomendação era de não manter o malte moído macerando por mais de 12 horas, pois isto tornava o processo improdutivo e arriscado. Primeiramente porque na época não existiam sistemas de refrigeração nas tinas, as reações bioquímicas e microbiológicas eram intensas o que poderia causar o aumento da temperatura da massa. Consideravam, na época, que temperaturas acima de 18°C geravam mostos demasiadamente ácidos e, por isso, os livros da época recomendavam não realizar esta técnica em regiões quentes ou no verão. Era comum jogarem blocos de gelo dentro da tina para evitar o aumento da temperatura e, consequentemente, da contaminação.
Outra técnica comum era separar a casca do griss e macerar apenas o griss com a intenção de não extrair substâncias indesejadas da casca e, principalmente, aumentar a cor do mosto.
Nos tempos de hoje, a pré-maceração evoluiu para um processo mais curto e moderno que chamamos de moagem úmida.
Na Pré Digestão, o macerado normalmente passava a noite nesta tina antes de ser mosturado. Encontramos uma planilha que indicava o seguinte ganho de extrato.
Para cervejas claras a pré-digestão poderá apresentar pontos negativos, como: incremento grande de cor no mosto, principalmente em variedades de cevada com cascas grossas ou águas ricas em carbonatos. Este processo gera cervejas com perfis mais rústicos, um leve incremento na adstringência e sabor mais intenso do cereal.
Tivemos a oportunidade de produzir uma Altbier com um cliente do Rio Grande do Sul em nossa Cervejaria Experimental. Moemos o malte e misturamos com toda a água da arriada. Para não correr riscos de contaminação mantivemos este macerado em 12°C por 12 horas. Após esse período realizamos o processo moderno de brassagem. Não observamos ganhos de rendimento, mas em contrapartida obtivemos uma cerveja com um perfil rústico muito agradável.
Decocção: a Velha Nova Técnica
A decocção de 3 fases foi a mãe de todas as outras variações. Na Baviera era chamada pelos cervejeiros de “Sicherheitsverfahren”, mostura de segurança, pois após a realização das 3 fervuras e homogeneização das partes, conseguia-se atingir as principais temperaturas da mostura e, portanto, garantir uma constância no procedimento.
Na época, era a única maneira que o cervejeiro possuía para atingir os rendimentos aceitáveis, mesmo usando maltes com pouco poder enzimático (devido secagens descontroladas) e muito mal solubilizados. O processo levava em torno de 5 horas e requeria um esforço muito grande dos cervejeiros.
Mesmo que a decocção de 3 fases seja considerada hoje muito morosa e custosa, continua tendo uma importância histórica muito grande pois permitiu ao cervejeiro antigo atingir as temperaturas, mesmo sem ter termômetros, e os tempos para os principais grupos de enzimas, mesmo sem conhecer na época a ação delas na íntegra.
Antes mesmo do uso de fórmulas matemáticas a decocção já era praticada por proporcionalidade. Separava-se 1/3 da mostura para fervura e, normalmente, ao retornar a mostura fervente para a mostura em repouso conseguia-se atingir as rampas de temperatura importantes ainda hoje (50°C a 55°C, 60°C a 65°C e 70°C a 75°C).
Em nossas produções na cervejaria experimental constatamos leve ganho de extrato, mas principalmente o resultado mais significativo foram cervejas com aromas intensos de grãos (cereais) e pão.
Infusão nova era da produção
Interessantemente encontramos uma citação no livro Ilustriertes Brauerei Lexikon, de 1910, sobre o início das técnicas de infusão. “Caso durante a brasagem a mostura não seja fervida, o que denominamos de infusão, não ocorrerá uma degradação da força Diastática, no máximo um enfraquecimento das reações com o aumento da temperatura. O processo de infusão são muito raros no nosso meio, mas não podemos ignorar o fato que o processo será relevante principalmente no que se trata de cervejas Lager claras com características únicas. De qualquer forma esta técnica ainda é uma alternativa inviável e tecnicamente injustificável”.
Com a evolução da técnica da infusão, já encontramos descrições de rampas de mosturas, porém, bastante longas como rampas proteicas a 50°C de 30 a 60 minutos de repouso e rampas amilolíticas com durações de 120 minutos. A técnica de infusão foi, inicialmente, usada pelos ingleses e depois assimilada pelos alemães. Representou, na época, um ganho enorme de produtividade e, principalmente, de combustível (carvão/óleo e lenha). Começaram a ser criadas cervejas mais leves, suaves e elegantes.
Veja também
Existia na época duas variâncias, infusão ascendente (atual) mas também a descendente onde se arriava a temperaturas acima de 75°C, depois baixava lentamente até próximo de 70°C. Confirmada a sacarificação, subia-se a temperatura para início da clarificação. Era uma técnica recomendada para maltes bastante solubilizados. Atualmente, entrou em total desuso.
Mostura de Moagens (Schrotmaischverfahren/Maischeverfahren ou Kubessa-Verfahren)
Antiga técnica que foi a precursora do trabalho executado pelos modernos moinhos de 3 pares de rolos e conjuntos sofisticados de peneiras.
Novamente, pela má qualidade dos maltes, os cervejeiros tinham que recorrer a técnicas para conseguir extrair o máximo do grão. Maltes antigos eram pouco solubilizados o que gerava uma moagem composta por cascas, griss grosso e um pouco da farinha. Na época, a indicação granulométrica era 15%, 50% e 35%, respectivamente. O griss se solubilizava com dificuldade na mostura e precisava ser fervido. Como a fervura da casca gerava um incremento grande de cor e adstringência, separavam as duas porções com um peneiramento rústico.
Arriava-se aos 48°C, depois com ou sem rampa proteica subia-se para as temperaturas de sacarificação (65°C a 70°C) por 20 minutos e, depois, fervia por pelo menos 30 minutos. Durante esse tempo as cascas são mosturadas separadas (fria ou morna) e aguardam a conclusão da fervura do griss. A mostura do griss grosso e quente retorna para a mostura da casca para elevar a temperatura total para 70°C a 74°C. Ainda existia outra variação deste método que separava a farinha de malte que era dosada apenas após o atingimento da temperatura final de mostura (70°C a 78°C).
Esta técnica permitia retirar o máximo de extrato das partes insolubilizáveis do griss. A quantidade de farinha de malte a ser dosada na rampa final, definia, segundo bibliografias da época, o sabor da cerveja (corpo).
Mostura de Clarificação (segundo Schmitz)
Nesta técnica a arriada acontecia em temperaturas normais, mantinha-se um período no repouso de sacarificação e, depois, fervia a mostura completa por 40 a 60 minutos. Após este tempo transferia-se toda a massa quente para a tina de clarificação. Pelas altas temperaturas e, portanto, baixa viscosidade, a clarificação do mosto ocorria rapidamente mas sem sacarificar totalmente. O mosto, rico em amido, era resfriado pelas próprias lavagens frias do bagaço e/ou trocador de calor. Existiam variações que lavavam o bagaço com água fervente também. Para reincorporar as enzimas neste mosto, os cervejeiros retinham 2% a 3% do volume do mosto recolhido, 15 minutos após a arriada, rico em enzimas ativas. O mosto clarificado era resfriado até 70°C onde então se dosava 3% de mosto rico em enzimas (kalter Zatz). Esta mistura ficava nesta temperatura até atingimento da reação negativa com iodo. Nestas tinas existia uma boia e uma tubulação que permitia drenar o mosto sobrenadante rico em enzimas. A técnica de Schmitz apresenta leves acréscimos de rendimentos, mas nos dias de hoje, em virtude das novas técnicas, perdeu totalmente a importância. Esta técnica, interessantemente, era recomendada para maltes claros bem solubilizados e com pouca proteína. Para maltes de qualidade inferior e proteína alta, a técnica gerava problemas na clarificação da cerveja (turvação) e filtração.
Mostura sob Pressão (segundo Lazarus-Schwensen)
Pelo fato do bagaço do malte ainda possuir grande quantidade de extrato, usava-se grandes panelas de fervura sob pressão e com agitação forte. Este método visava mais um rendimento quantitativo do que qualitativo. Após a drenagem do mosto primário por completo, numa rampa comum, acrescentava-se água ao bagaço e colocava-o para ferver. Fervia-se por 20 a 30 minutos em 2 bar. de pressão. Terminada a fervura do bagaço este era novamente incorporado com o mosto primário resfriado. A temperatura total atingia os 65oC a 70°C onde permanecia até garantir total sacarificação. Esta técnica resultava em ganhos de extrato na ordem de 3% a 4%, gerava um mosto com uma coloração intensa, e aromas típicos de pão.
Uma variação usada para reduzir o incremento de cor e aroma de pão era drenar todo o mosto, inclusive com sucessivas lavagens e somente depois ferver o bagaço. Explicitas eram as recomendações de não usar esta técnica para cervejas claras e leves.
Steinbier (Mostura e Fervura com Pedras Quentes)
É uma técnica tão antiga quanto a cerveja. Hoje quase inaceitável e exótica, mas no passado usavam pedras aquecidas na brasa (800oC até 1000°C) que eram despejadas dentro da mostura para elevar a temperatura até a fervura. O motivo básico para isso era simplesmente que as tinas maiores eram, na maioria, feitas de madeira e não poderiam receber fogo direto.
Estas pedras, após a mostura, com açúcares caramelizados de alto peso molecular em sua superfície, eram então recolocadas na tina de fermentação onde participavam da fermentação primária ou até secundária.
Esta modalidade nunca deixou de existir e, na verdade, ressurgiu com bastante força no segmento home e craft. Resultam em cervejas rusticas com notas defumadas e caramelizadas.
Esperamos que estas técnicas antigas possam ter aguçado novos projetos. Certamente, a equipe técnica da Cooperativa Agrária, bem como nossa Cervejaria Experimental estão à disposição para ajudá-los nesta caminhada.
Material Bibliográfico Consultado
“Bierbrauerei” Ladislaus Ritter von Wagner – Weimar 1884 – EditoraVernhard Friedrich Boigt
“IlustriertesBrauerei-Lexikon” – Dr. Max Delbrück – Berlin 1910 – Verlagsbuchhandlung Paul Parey. Participação Dr G. Bode, Professor Dr C.v. Echenbrecher, Engenheiro Diplomado K. Fermann, Professor Goslich, Engenheiro E. Hahck, Dr F. Hayduck, Professor Dr J.F. Hoffmann, Professor Lindner, Dr O. Mohr, Dr O. Neimann, DR W. Rommel, Professor Dr F. Schönfeld, Professor Dr E. Truve, Dr W. Völtz e Professor Dr W. Windisch.
” Diebrauteschnischen Untersuchungsmethoden” – Palwoski e Doemens – Retrabalhado por Dr Gerog Novak – München 1947 – Verlag Hans Carl – Nürnberg
” DieBrauereiimBild” – Dr Enenheiro Karl Hennies e Engenheiro Robert Spanner – LochhambeiMünchen 1956 – Verlag Hans Carl – Nürnberg
” DieTechnologie de Würzebereitung” Professor Dr Karl Schuster- Stuttgart 1968 – Ferdinand EnkeVerlag Stuttgart
” Lehrbuch der Brauerei”Professor da Universidade de LöwenJ. deClerk – Traduzido por Professor Dr Engenheiro E. h. Paul Kolbach – Berlin 1970 – Versuchund LehranstaltfürBrauerein in Berlin