Por sua importância no processo de produção de bebidas, a água necessita
de tratamentos adequados para que possa ser utilizada com segurança
Paulo Garcia de Almeida
Clorados na desinfecção
A água ocupa um lugar de destaque na indústria de bebidas e alimentos, pela participação significativa no processo produtivo, seja como insumo ou como matéria-prima, além de ter importância fundamental na vida humana.
Para ser utilizada e consumida com segurança, o precioso líquido deve estar em conformidade com as características físico-químicas e bacteriológicas que atendam, não apenas aos requisitos legais para esta finalidade, mas também ao rigoroso padrão de qualidade deste segmento industrial.
No processo de potabilização, ou seja, para estar apropriada para consumo humano, a água deve ser submetida à algumas etapas de tratamento que podem incluir coagulação, floculação, sedimentação, filtração e desinfecção. Na desinfecção, utilizam-se produtos específicos que visam eliminar ou inativar diversos micro-organismos como bactérias, vírus e fungos.
Nesta importante fase do tratamento, o sistema de cloração é o mais tradicional e eficaz, sendo também aplicado pela ótima relação custo x benefício. A atividade efetiva do cloro sobre os micro-organismos dependerá de algumas variáveis como: caraterísticas do produto clorado; concentração de cloro livre disponível; tempo de contato; quantidade de matéria orgânica presente etc.
A desinfecção não se restringe a potabilidade da água, mas também faz parte de procedimentos operacionais na indústria de bebidas e alimentos em geral e nos estabelecimentos de saúde como clínicas e hospitais.
História química dos clorados
Em 1810 o químico britânico Humphrey Davy avaliou e concluiu que, Karl Scheele, em 1774, o mesmo químico farmacêutico que descobriu o ácido cianúrico, havia produzido um novo elemento para a tabela periódica, através da famosa reação do ácido clorídrico com dióxido de manganês, em presença de calor, produzindo um gás esverdeado que ele batizou como Cloro, da palavra grega khloros, que significa verde pálido. Atribui-se também à Humphrey Davy, a descoberta do dióxido de cloro, enquanto outros pesquisadores marcaram sua presença na família química dos clorados, como Claude-Louis Berthollet e Charles Tennant, desenvolvendo hipocloritos como agentes de branqueamento. No início da década de 1820, o farmacêutico Antoine-Germain Labarraque, que já havia aplicado com sucesso o cloro na desinfecção de ambientes, influenciou cirurgiões franceses e ingleses no uso de soluções de hipoclorito para tratamento de feridas e acabou sendo um dos pioneiros na introdução deste modo de
desinfecção e higienização. Ainda na área de saúde, o médico húngaro Ignaz Semmelweis foi responsável por conduzir em 1846 um dos primeiros estudos experimentais relacionado à falta de higienização das mãos, orientando profissionais da área médica e enfermagem, que trabalhavam no Hospital Geral de Viena, para que lavassem as mãos com uma solução clorada antes dos procedimentos ambulatoriais e cirúrgicos. O uso de cloro e derivados clorados, já conhecido e estudado em várias aplicações de desinfecção serviu de fundamento para que o médico sanitarista John Laing Leal propusesse seu uso, na primeira década do século XX, em um sistema de tratamento para abastecimento de água potável da cidade de Jersey City nos EUA. Embora o uso de cloro e hipocloritos nestas várias aplicações seja bem conhecido há mais de cento e cinquenta anos, outros importantes derivados clorados, os isocianuratos (ácido tricloroisocianúrico e dicloroisocianurato de sódio), também foram introduzidos no final da década de 50 e começo dos anos 60, incialmente com o propósito de desinfecção de piscinas.
Observando sob os aspectos químicos, os hipocloritos de sódio e cálcio, são moléculas inorgânicas enquanto os isocianuratos como o dicloroisocianuato de sódio (anidro e dihidratado) e o ácido tricloroisocianúrico, são moléculas orgânicas, ou seja, possuem na sua estrutura átomos de carbono e ligações covalentes. Alguns aspectos físico-químicos também se diferem nestes compostos clorados, enquanto o hipoclorito de sódio se apresenta na forma líquida, os hipocloritos de cálcio, dicloroisocianuratos e ácido tricloroisocianúrico são sólidos e apresentados na forma em pó, granulada ou em tabletes. No quesito solubilidade variam de pouco solúvel até muito solúvel e o pH das respectivas soluções pode variar de muito ácido à fortemente alcalino. No caso dos isocianuratos, estes produtos estão disponíveis comercialmente em concentrações que variam entre 56% e 90% em cloro ativo.
Considerando portanto que os clorados utilizados em desinfecção possuem diferentes propriedades, para o correto uso e aplicação desses produtos, devem ser consideradas algumas características, tais como: estrutura molecular, forma física,solubilidade, pH, tempo de contato, temperatura e concentração de ativo, na escolha do melhor produto que atenda a necessidade do usuário.
Ação microbicida
Embora pesquisado há décadas, a comprovada ação do cloro em bactérias, vírus e protozoários, ainda não está perfeitamente esclarecida de que forma que ele elimina ou inibe os micro-organismos, mas dentre as possibilidades podem ser citadas: a cloração de anéis de aminoácidos; liberação do oxigênio ácido hipocloroso que se combina com os elementos do protoplasma celular; diminuição de conteúdo intracelular e diminuição da absorção de nutrientes; oxidação de enzimas sulfidrila e aminoácidos; inibição da síntese proteica; diminuição da absorção de oxigênio; ruptura no DNA ou a ação através da combinação destes fatores, causando danos fisiológicos que afetam a estrutura celular dos micro-organismos.
No entanto, o cloro e estes compostos clorados, reagem com a água liberando cloro livre na forma de ácido hipocloroso e íon clorito, sendo que o verdadeiro agente microbicida ativo é o ácido hipocloroso não dissociado (HOCl).
Cloro
Cl2 + H2O ⇔ HOCl +H+ + Cl-
HOCl ⇔ ClO- + H+
Hipoclorito de sódio
NaOCl + H2O ⇔ HOCl + Na+ + OH-
HOCl ⇔ ClO- + H+
Hipoclorito de cálcio
Ca (ClO)2 + 2H2O ⇔ 2HOCl + Ca+2 + 2OH-
HOCl ⇔ OCl- + H+
Veja também
O ácido hipocloroso (HOCl) possui uma atuação bactericida mais eficiente que o íon hipoclorito (OCl-) devido à maior permeabilidade da membrana celular ao HOCl que ao íon OCl- e por ser uma molécula neutra. Esta característica de dissociação é função do pH.
Em solução aquosa e valores de pH inferiores a 6, a dissociação do ácido hipocloroso é fraca, sendo predominante a forma não dissociada (HOCl). Em soluções de pH menor que 2, a forma predominante é o Cl2; para valores de pH próximo a 5, a predominância é do HOCl, tendo o Cl2 desaparecido. A forma OCl- predomina em pH 10. As águas de abastecimento, em geral, apresentam valores de pH entre 5 e 10, quando as formas presentes são respectivamente o ácido hipocloroso (HOCl) e o íon hipoclorito (OCl-).
Esta importante característica da ação do ácido hipocloroso em função do pH, pode propiciar vantagens aos isocianuratos clorados como forma de doadores de cloro.
Enquanto as soluções de hipoclorito de sódio e cálcio tem pH alcalino, as soluções de dicloroisocianuratos e do ácido tricloroisocianúrico possuem respectivamente pH próximo à neutralidade ou ácida.
Outro aspecto a ser observado na configuração química dos isocianuratos clorados é que estas moléculas orgânicas possuem maior quantidade de átomos de cloro em relação ao hipoclorito de sódio e não adicionam cálcio na água.
Esse posicionamento dos átomos na molécula, proporciona diferenças importantes na liberação do cloro. Enquanto o hipoclorito de sódio libera todo seu cloro como cloro livre disponível, o dicloroisocianurato libera apenas 50% como disponível e o restante permanece ligado na molécula como uma reserva. Quando o cloro disponibilizado for consumido, o equilíbrio se altera e a reserva é liberada de imediato, propiciando assim uma ação controlada e exercendo efeito bactericida mais prolongado. Em termos de prazo de validade, os isocianuratos são estáveis por mais de dois anos enquanto as soluções de hipocloritos acusam sensível diminuição do teor de cloro em poucos meses. Além do fácil e seguro manuseio, outro ponto positivo, para a área de armazenagem, é que produtos na forma sólida ocupam menor área de estocagem que produtos na forma líquida.
Aspectos regulatórios
Os principais organismos internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (WHO), Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), Agência Americana de Proteção Ambiental (EPA), FDA e Autoridades Europeias atestam o uso dos isocianuratos como produtos saneantes.
Quanto a legislação brasileira em vigor, a potabilidade e controle de água para o consumo humano, no que diz respeito a desinfecção com cloro, regulamentada pela Portaria Consolidada n°5/2017, do Ministério da Saúde, o uso dos isocianuratos estão previstos na lista positiva de produtos para desinfecção na norma da ABNT NBR 15784:2017 que trata dos produtos químicos utilizados no tratamento de água para consumo humano, cujas especificações técnicas, métodos de ensaios e requisitos, estão definidos na NBR 16570:2019 que se refere a aplicação dos isocianuratos clorados em saneamento básico.
Além do uso para água de consumo humano a Resolução RDC n° 14 / 2007 da Anvisa aprovou o uso destes produtos para sanitização/desinfecção de superfícies e equipamentos que entram em contato com o alimento e como desinfetante hospitalar para superfícies fixas e artigos não críticos.
Clorados nas pandemias
A cólera foi uma das principais pandemias que marcou profundamente a história a partir do início do século XIX e matou milhares de pessoas ao redor do mundo. A doença é causada pela ação da toxina liberada pela bactéria Vibrio cholerae e a transmissão ocorre por via fecal-oral, ou seja, pela ingestão de água contaminada como demonstrado pelo médico inglês John Snow em 1854. Ao término daquele século e início do século XX, todos os países europeus e americanos, por onde passara o flagelo, haviam desenvolvido estratégias de prevenção e principalmente melhoramentos das condições de saneamento e abastecimento de água, através do tratamento dos mananciais e utilização do cloro, seja como gás ou seus derivados na forma liquida ou sólida. A ação efetiva do ácido hipocloroso no decorrer do século, foi ratificada pelo uso em inúmeros processos de higienização e desinfecção na área de saúde.
Entre 2013-2016 um surto de vírus na África Ocidental, causou a epidemia que mais disseminou a doença pelo vírus Ebola (EVD) na história. O uso do cloro em solução, como forma de desinfecção de ambulâncias, superfícies, ambientes domésticos e locais de enterro, sempre foi recomendado e aplicado. Outro grupo de vírus de importância epidemiológica, é o coronavírus. Quatro gêneros (alfa, beta, gama, delta) são conhecidos cujos hospedeiros são os humanos, mamíferos e aves. Do grupo betacoronavírus três das infecções por coronavírus em humanos podem ser muito mais graves e recentemente causaram grandes surtos de pneumonia mortal: SARS-C-CoV (Severe Acute Respiratory Syndrome) infecta seres humanos e vários animais identificado em 2002 na China, como a causa de um surto de síndrome respiratória aguda grave (SARS). MERS-CoV (Middle East Respiratory Syndrome) encontrado em homens, dromedários e morcegos. Foi identificado em 2012 na Jordânia e Arábia Saudita como a causa da síndrome respiratória do Oriente Médio. Recentemente,em dezembro de 2019, o mundo foi surpreendido pela transmissão de um novo coronavírus (SARS-CoV-2) de alta capacidade de infecção, identificado na cidade de Wuhan-China, que causou a pandemia do COVID-19, doença que foi disseminada e que acabou abalando a saúde, a economia e consequentemente toda a sociedade, principalmente nos países mais afetados, à partir deste ano de 2020. Mesmo com o avanço de todas as áreas do conhecimento humano e da tecnologia, este minúsculo desconhecido surpreendeu e deixou os cientistas da área da saúde do mundo inteiro, repletos de incertezas quanto aos medicamentos e tratamentos a serem adotados antes da chegada da vacina.
Os derivados clorados fazem parte da lista positiva dos produtos indicados para desinfecção que podem ser utilizados para combate ao COVID-19
Sabe-se que a transmissão do vírus causador da COVID-19 , acontece de uma pessoa doente para outra ou por contato próximo, por meio de gotículas respiratórias através da tosse ou espirro ou por contato com objetos ou superfícies contaminadas, seguido de contato com boca, nariz ou olhos, pois o vírus pode ficar nestes materiais por horas ou dias dependendo do tipo. Em função destas condições foi reforçada como cuidado básico, a prática correta dos procedimentos de higiene incluindo a lavagem das mãos com água e sabão e o uso do álcool em gel 70%, que são fundamentais durante a pandemia. Seguindo orientações dadas pela OMS aos órgãos de saúde dos países afetados pela doença, o Ministério da Saúde do Brasil, através da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, publicou várias Notas Técnicas (NT) que orientam o processo de higienização e desinfecção para várias situações durante este momento que atravessamos e os derivados clorados fazem parte da lista positiva dos produtos indicados para a desinfecção. A NT47/2020/SEI/COSAN/GHCOS/DIRE3/Anvisa recomendou alguns produtos saneantes que possam substituir o álcool 70 % para desinfecção de objetos e superfícies. Dentre os ativos e produtos alternativos ao álcool, que podem ser utilizados além do hipoclorito de sódio, foi indicado o uso do dicloroisocianurato de sódio na concentração de 1.000ppm em cloro ativo.
Deste modo, os isocianuratos clorados , muito bem estudados e avaliados quanto aos aspectos químicos e toxicológicos e por possuírem eficiência comprovada, estão inseridos nas recomendações dos processos de desinfecção tanto para uso hospitalar, quanto para uso na água potável, na desinfecção de piscinas, produtos hortifrutícolas, na indústria de bebidas e alimentos em geral. Sempre é importante ressaltar que antes de colocar em prática os procedimentos de desinfecção, com qualquer que seja o produto, deverá ser precedido por um correto processo de lavagem e limpeza para que a ação do desinfetante seja efetiva.
No Brasil, para terem garantidas a segurança de uso e aplicação nas finalidades citadas,é fundamental que os produtos clorados, utilizados em desinfecção, sejam devidamente registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária-Anvisa.