Há muitos séculos, as enzimas contribuem para a tecnologia de produção de bebidas com as mais diversas formas de aplicação
* LETÍCIA CORASSA NEVES E PAULO GARCIA DE ALMEIDA
A atividade das enzimas tem sido observada há milênios, através da transformação da uva em vinho, da cevada em cerveja, do trigo em pão, do leite em queijo, mas a primeira teoria sobre enzimas só foi publicada em 1835 por Jöns Jacob Berzelius.
Louis Pasteur alguns anos depois, concluiu que a fermentação do açúcar em álcool pela levedura, era catalisada por fermentos (enzimas) que por sua vez eram inseparáveis da estrutura das células vivas deste levedo e estabeleceu então o conceito de que as enzimas eram células vivas. Em contra partida, nesta mesma época, o químico alemão Justus von Liebig afirmou que a fermentação era provocada por substâncias químicas.
A denominação enzima (do grego énsimo, formado de én = em e simo = fermento ou levedura) foi dada, em 1878, pelo fisiologista alemão Alexander Friedrich Khune.
A partir dos trabalhos de purificação de enzimas iniciados nas primeiras décadas do século passado, o bioquímico James Batcheller Sumner (1926), isolou e cristalizou a urease e demonstrou que os cristais de urease consistiam inteiramente de proteína, postulando que todas as enzimas seriam proteínas. Entre 1930 e 1936, John Northrop e seus colegas cristalizaram a pepsina, a quimotripsina e a tripsina bovinas e descobriram que essas moléculas também eram proteínas e a natureza proteica das enzimas passou a ser estabelecida.
As enzimas foram consideradas proteínas até a década de 80, mas com a descoberta das ribozimas que são enzimas catalíticas compostas de ácido ribonucleico RNA e que deram Prêmio Nobel de Química para Thomas R. Cech e Sidney Altman, esta consideração foi revista.
Na realidade o que se sabe atualmente é que as enzimas constituem-se uma manifestação de vida, pois atuam em quase todas as reações químicas do metabolismo dos seres vivos.
Sendo assim, enzimas são substâncias orgânicas, majoritariamente proteicas, sintetizadas no interior das células de plantas, animais e micro-organismos, que agem no meio extracelular e têm a função de catalisar reações químicas, aumentando a velocidade de reação e diminuindo, consideravelmente, o consumo de energia.
Pela capacidade de catalisar reações, as enzimas têm um vasto campo de aplicação e além de serem utilizadas em produtos cosméticos, medicamentos e tratamentos de efluentes, desempenham também um papel importante na indústria alimentícia.
As enzimas são agentes interessantes para a tecnologia de alimentos devido ao seu potencial na formação de compostos, sejam substâncias necessárias para a produção de alimentos ou, compostos indesejáveis, os quais podem levar a deterioração dos produtos. São consideradas como coadjuvantes de tecnologia no processamento de alimentos pela alta especificidade, elevada velocidade de reação, eficiência em baixas concentrações, atividade em condições sensíveis de pH, baixa toxicidade e inativação pelo calor.
A velocidade das reações enzimáticas aumenta com a elevação da temperatura, porém, quando se atinge a velocidade máxima há um decréscimo na atividade enzimática devido à desnaturação proteica e talvez, essa seja uma das propriedades mais relevantes desses compostos para a indústria alimentícia.
Há muitos séculos as enzimas já contribuem na tecnologia de alimentos, como na produção de bebidas alcoólicas fermentadas e até hoje, tem aplicações diversas no segmento alimentício em setores como panificação, óleos e gorduras, laticínios, álcool,e bebidas como cerveja, vinhos e sucos de frutas.
Um dos campos mais importantes da aplicação de enzimas na indústria de bebidas é na extração de suco de frutas e vegetais. Enzimas pectinases quebram as pectinas das paredes celulares da planta e facilitam a extração, aumentando o rendimento do caldo extraído. O uso das pectinases no processo de extração facilita a clarificação e filtração do suco e evita a geleificação durante a estocagem, melhorando assim, a qualidade da bebida.
Para os sucos em que a cor deve acompanhar um padrão sensorial, pode-se usar a enzima celulase para liquefazer o tecido vegetal e extrair pigmentos do fruto, garantindo uma melhor coloração.
Ainda no segmento de bebidas não alcoólicas, aplica-se a glicose isomerase para a produção de xaropes de frutose que são utilizados nas indústrias de refrigerantes.
Outro campo de aplicação das enzimas na fabricação de bebidas é na limpeza de membranas de ultrafiltração, onde a combinação de celulase e protease produz excelentes efeitos de limpeza.
Preparações enzimáticas que contém celulases, he-micelulases e a-glucanases são utilizadas para a degradação do amido não polissacarídeo e podem ser aplicadas na fermentação, destilação e extração de café.
Na produção de bebidas destiladas, a glico-amilase e a alfa-amilase têm um importante papel na decomposição do amido, evitando turvação e gelatinização durante o processamento.
No processo de fabricação de vinhos, o uso de enzimas está diretamente relacionado a problemas específicos que podem ocorrer durante as etapas de clarificação, maceração, filtração e extração de pigmentos. Neste aspecto, as enzimas pectinolíticas são as mais importantes, pois participam das etapas de clarificação, filtração e extração de substâncias naturalmente presentes na uva macerada.
Além das pectinases, em vinhos produzidos a partir de uvas parasitadas pelo fungo Botritis cinérea, utilizam-se enzimas a-glucanases para remover os a-glucanos (polímeros de glicose ramificados produzidos pelo fungo) que surgem no mosto e causam problemas nas etapas de clarificação e filtração do vinho.
São muitas as vantagens do tratamento enzimático na fabricação de vinhos, como: extração, clarificação e filtração mais eficientes, redução da espuma formada na fermentação, remoção de substâncias mucolíticas (evitando-se a turbidez e os processos oxidativos), que contribuem para as propriedades organolépticas da bebida. Além disso, as enzimas garantem menor desgaste nos equipamentos e tempo de processo diminuído em cerca de 30%-50%, aumentando a capacidade da planta.
Outro processo que há séculos tem a participação das enzimas é na fabricação de cervejas, as quais entram na produção a partir do malte de cevada, um dos principais ingredientes da bebida. Na sua produção, várias enzimas colaboram, tal como a-glucanase, que diminui a viscosidade do mosto e facilita a filtração, a-amilase, para liquefazer e fermentar a matéria-prima, glicoamilase, que aumentam o teor de certos açúcares, pentosanase, para remover compostos indesejáveis e, para evitar a turbidez do produto final, é utilizado às enzimas papaína, bromelina e ficina, esta última usada em menor escala devido ao alto custo. Há também a aplicação de enzimas para auxiliar a nutrição das leveduras, como protease bacteriana, exopeptidase e fitase.
Avanços tecnológicos tornam possível a substituição de parte do malte por enzimas industriais e cereais não maltados, levando a uma redução nos custos de produção.
Nas últimas décadas foram descobertos micro-organismos que se adaptaram e vivem em condições atípicas e extremas tais como: elevadas ou baixíssimas temperaturas; áreas de elevada salinidade; alta acidez; alta alcalinidade; alta pressão ou na abundância de metais tóxicos. Isolando-se o DNA existente nestes microrganismos extremistas e inserindo em microrganismos conhecidos pode-se criar oportunidades para o desenvolvimento de enzimas que apresentam atividade em condições extremas e que pos-teriormente poderiam ser utilizadas em muitos outros processos industriais. Apesar da utilização secular das enzimas na produção de alimentos, ainda há muito que se explorar para este segmento. Porém, se considerarmos o progresso na biotecnologia, podemos esperar que em um futuro próximo, as enzimas terão um papel ainda mais importante na produção de alimentos aliada à sustentabilidade, uma vez que é uma tecnologia limpa, que consome menos energia e gera menos impacto ambiental comparada aos processos tradicionais.