Escolher o ingrediente certo e a dosagem correta
pode fazer a diferença na qualidade final da cerveja
Já se foi a época em que as cervejas eram fabricadas apenas com água, malte, levedura e lúpulo. Os chamados 4 elementos podem virar uma infinidade de ingredientes que são adicionados dependendo da criatividade de nossos cervejeiros de plantão.
A incorporação de outros ingredientes à receita de uma cerveja não é novidade no mundo cervejeiro, mas no Brasil não era uma coisa muito usual. O mercado cervejeiro brasileiro sempre seguiu a escola alemã e, por muitos anos o que tínhamos por aqui era a deliciosa Pilsen e algumas variações das lagers como uma Bock e uma Malzbier. A escola alemã de cerveja segue a Lei da Pureza (Reinheitsgebot), criada há 500 anos, que estabelece que a cerveja bávara só pode conter cevada, água, levedura e lúpulo. A grande discussão é se essa lei, atualmente, ajuda ou atrapalha o mercado de cerveja na Alemanha. O consumo está estagnado e os defensores das cervejas com adição de outros ingredientes acreditam que isso possa contribuir para tornar esse mercado menos monótono, incentivando o aumento de consumo.
O consumidor jovem busca experiências diferenciadas e, por isso, o crescimento das artesanais é tão acentuado. A chegada das artesanais mostrou ao mercado que existem outras escolas, tipos e estilos de cervejas. O americano, além de fazer cerveja muito bem, sabe como ninguém fazer marketing. Se “apropriou” do termo craft beer de tal forma que qualquer cerveja artesanal consumida no mundo nos faz lembrar da craft beer americana. Ponto para eles.
O brasileiro está aproveitando o momento e construindo novos negócios baseados nesse movimento. São microcervejarias, distribuidoras, brewpubs, lojas físicas e digitais, e outros tantos negócios que gravitam sob o tema das cervejas artesanais. A possibilidade de fazer cerveja em casa desperta o interesse de milhares de pessoas no país movimentando fornecedores de ingredientes, equipamentos, embalagens e serviços relacionados ao tema. Muitos ficam no hobby o que é bastante interessante, enquanto outros começam a encarar isso como um negócio tornando-se novos empreendedores no mercado brasileiro.
Esse movimento vem criando um novo consumidor de cerveja que não admite mais beber somente a Pilsen, quer participar de diferentes “experiências gustativas”, como costumam dizer os especialistas. Ou seja, quer provar novas cervejas, de sabores e estilos variados. O aumento de consumo das cervejas especiais vem alterando a forma como o consumidor escolhe sua cerveja, o sabor é fator considerado bem mais importante do que antes. E aí os ingredientes ga-nham também em importância porque o consumidor quer variedade de produtos, quer opções diferentes, mas com qualidade.
Estilos e sabores surpreendentes
A Bélgica foi uma das precursoras na adição de ingredientes inusitados na produção de cervejas. Conta a história que os cervejeiros belgas fermentavam suas receitas ao ar livre, o que facilitava a eventual queda de uma fruta ou outra nos barris de cervejas. Os sabores agradaram e a prática foi ganhando força. Com o passar dos tempos, escolas mais modernas como a americana, ajudaram a popularizar essa prática ao adicionar ingredientes como mel, açúcar mascavo, abóbora e outros tantos.
No universo das cervejas especiais existem rótulos que unem ingredientes que podem ser considerados inusitados ou estranhos, de acordo com o paladar do bebedor. Cereja, abóbora, amora, mel, capim-limão, açaí, chocolate, maracujá, mandioca, rapadura ou bacon são um pequeno exemplo da variedade de ingredientes que estão na composição das cervejas brasileiras.
O pioneirismo na adição de ingredientes, até então, inusitados às receitas cervejeiras no Brasil cabe a Cervejaria Colorado, na época propriedade de Marcelo Carneiro, hoje incorporada ao portfólio de fábricas da Ambev. Proveniente de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, a Colorado incorporou desde o início ingredientes regionais nas suas cervejas, entre eles mandioca, rapadura e café. Pode se discutir se os sabores são muito ou pouco presentes nessas cervejas, mas vale aí o ineditismo e ousadia de fazer uma cerveja assim há quase duas décadas. Outra cervejaria que inovou nesse sentido foi a Amazon Bier. Localizada em Belém, berço das frutas e sementes tropicais da Floresta Amazônica, a empresa percebeu rápido que esse era um caminho “natural” para suas criações. A partir daí foram produzidas várias cervejas com ingredientes como açaí, taperebá, cupuaçu, bacuri, entre outros.
Outra vantagem da utilização de ingredientes da região é o desenvolvimento da indústria local. Há dez anos, regiões como o norte do país, praticamente, não tinham produção de cervejas artesanais, hoje essa história começa a mudar, fomentando negócios e estabelecendo produtores e produtos com a identidade da região. Isso faz parte da cultura da cerveja artesanal que é calcada na produção local, afinal como dizem: a melhor cerveja é aquela produzida no “meu bairro”. Parte do estrondoso crescimento das craft beer americanas aconteceu baseado nessa filosofia. E também porque a utilização de ingredientes regionais em uma cerveja artesanal sem conservantes não permite que um produto viaje tantos quilômetros como uma cerveja mainstream produzida pelas grandes cervejarias.
A criatividade do cervejeiro brasileiro é notável e admirada pelos especialistas internacionais na área, mas é preciso muito cuidado para não extrapolar e lançar no mercado cervejas que não têm nenhuma identidade e com receitas que são uma “verdadeira salada”. É preciso que o cervejeiro saiba dosar corretamente os ingredientes (também chamados de adjuntos quando não fazem parte dos quatro principais na composição da cerveja), as quantidades e a variedade usada na receita. Essa adição de ingredientes pode ser interessante também para uma redução de custo, parecido com o que os restaurantes fazem com frutas, legumes e verduras de época, inclui-se no cardápio produtos mais baratos melhorando a rentabilidade do negócio.
É possível, portanto, ser criativo e ao mesmo tempo abocanhar melhores resultados com um planejamento adequado na utilização de ingredientes mais exóticos. Outro aspecto importante é ter um posicionamento da cervejaria sempre para não se deixar levar por modismos e fazer com que o portfólio da empresa vire “um samba do crioulo doido”.
Não é que exista regras definidas, é só uma questão de planejamento e organização. Até porque, atualmente, a maioria das principais cervejarias artesanais brasileiras misturam estilos, escolas e ingredientes com boa técnica e conhecimento.
E não é só as cervejarias brasileiras que apostam na diversificação de sabores e estilos, na última Brau Beviale, realizada em Nuremberg, na Alemanha, os apaixonados por cervejas puderam degustar mais de 250 cervejas fabricadas por cervejarias de 20 diferentes países de todo o mundo em um espaço criado especificamente para as cervejas artesanais. No Craft Beer Corner trocaram informações sobre práticas cervejeiras, além de degustar cervejas com ingredientes bastante diferentes, como uma cerveja produzida com melão defumado e uma ale de pepino.
Adjuntos
Veja também
A produção de cerveja necessita apenas de água, malte, lúpulo e levedura, são os ingredientes básicos e indispensáveis ao processo. Mas outros ingredientes, também chamados de adjuntos, podem ser utilizados no processo de produção.
Esses adjuntos podem ajudar na redução de custos e também contribuem com sabores e características marcantes à bebida. São eles:
Açúcar: É o mais comum dos ingredientes. Pode ser utilizado simplesmente para aumentar o teor alcoólico da bebida, mas algumas cervejas possuem sabores bem característicos por utilizarem esse aditivo. Pode-se utilizar o açúcar de milho, de cana, mascavo, de beterraba, rapadura, melaço, entre outros. O açúcar aumenta o teor alcoólico sem alterar o corpo da bebida.
Frutas e especiarias: São muito utilizadas como aromatizantes na cerveja, conferindo um sabor muito especial. As cervejas artesanais utilizam bastante esses ingredientes em sua composição como faziam as cervejas belgas na fermentação das lambics( framboesa e cereja) e nas cervejas de trigo(cascas de laranja e coentro). O cervejeiro brasileiro tem à disposição uma grande variedade de frutas e especiarias típicas de nossa região. Mundialmente, a witbier é uma das cervejas mais conhecidas e produzidas por cervejeiros caseiros, inclusive. No entanto, outras especiarias como cardamomo, pimenta, alecrim e tantas outras são comumente utilizadas em diversos estilos diferentes de cerveja.
Cereais não maltados: Arroz e milho são bastante utilizados na produção de cerveja, inclusive quando se pretende reduzir custos. Mas também é possível fazer boas cervejas utilizando esses adjuntos. No Brasil criou-se um mito de que o milho prejudica o sabor da cerveja em virtude de sua utilização pelas grandes cervejarias por questões econômicas. Quando empregados de forma correta podem ser muito úteis no processo. Outros cereais como o trigo e a aveia também são empregados na produção de cerveja.
Corante: A legislação brasileira permite a utilização de corante para ajustar a cor da cerveja. A escolha correta do malte, além de algumas técnicas diferentes na brassagem possibilita a correção de cor, evitando o uso desses aditivos.
Madeira: Pouco conhecidas no Brasil, as cervejas de barril ganharam força nos últimos anos por aqui. Para sua produção é necessário a utilização de barris de madeira para o envelhecimento/maturação. Normalmente, são utilizados barris de carvalho já usados na produção de vinhos, cachaça e uísque. Podem ser utilizadas diversos tipos de madeira, como o carvalho, amendoim, jequitibá, ipê, entre outras.
Inspirando nossas cervejarias
Uma das principais referências do segmento no país, a Way Beer sempre optou pela inovação em sua linha de cervejas com a escolha de ingredientes diferenciados. Em seu extenso portfólio, destaque para a Watermelon Ale, JabutiGose e a recém-lançada Coffee Brow Ale.
A Watermelon Ale é uma cerveja colaborativa desenvolvida em parceria com a cervejaria americana Jester King. A cerveja, uma Summer Ale, leva melancia em sua receita, ingrediente que resulta em refrescância. A Watermelon é uma cerveja de cor avermelhada, devido à melancia e ao hibisco, e tem 4,7% de álcool. A Coffee Brown Ale segue o estilo base Brown Ale. É uma cerveja mais seca, com menos açúcar residual e coloração proveniente dos maltes especiais, com uma graduação alcoólica de 5,2%. O grande destaque da bebida fica por conta da utilização do café fermentado. Após a fermentação, o café foi trabalhado ainda em estado verde (não torrados) em barricas de Carvalho, utilizadas antigamente para a produção de cachaça, onde descansou por vários meses.
“O mais bacana dessa cerveja é a adição do café fermentado. Escolhemos a empresa Fuc (Franck´s Ultra Coffee) que trabalha com um dos melhores cafés do Paraná, orgânicos, certificados e fermentados. Neste projeto foi utilizado um barril de Carvalho usado anteriormente para fazer cachaça. O processo de torra também é especial buscando o ponto de secagem ideal e evitando caramelização excessiva, o que contribui para um café sem amargor, com corpo e acidez equilibrados, depois é feita uma infusão durante o processo de maturação da cerveja”, explica Alessandro Oliveira, mestre cervejeiro e sócio proprietário da Way Beer.
Já a JabutiGose é uma cerveja colaborativa produzida em parceria com as cervejarias DUM e DOGMA. A cerveja tem como grande destaque a utilização de Sal Marinho da região de Mossoró e da Jabuticaba, uma fruta nativa da Jabuticabeira, árvore frutífera brasileira nativa da mata Atlântica. A JabutiGose é uma cerveja Sour, com alta acidez e 3,5% de teor alcoólico.
Aproveitando o melhor que a terra tem para oferecer, a Tibaya Cervejaria, de Atibaia, cidade do interior de São Paulo, conhecidíssima por suas plantações de morango lançou uma Fruit Beer com adição da fruta:a Pedrita Morango. A cerveja tem 3,9% de teor alcoólico, 8 IBUs (unidade de amargor), não é filtrada e coloração âmbar.
A cervejaria Blondine, de Itupeva (SP), lançou recentemente a Blondine Spices, uma saison com 10 grãos e especiarias, 4,5% de teor alcoólico e 25 ibus. Coloração amarelo clara e corpo leve, disponível em garrafa de 500ml e chope.
Aproveitando a onda das bebidas saudáveis, uma exigência cada vez maior dos consumidores, a Cerveja Capitu, em parceria com a Better Food for You, empresa especializada em alimentos saudáveis, lançou em São Paulo, uma Belgian Saison sem glúten, com levedura belga, e como um de seus ingredientes principais a mandioquinha, um tubérculo naturalmente sem glúten. A mandioquinha, segundo o cervejeiro da Capitu, Frederico Ming, proporciona à bebida um sabor sutil e aveludado, garantindo drinkability e muita refrescância.
Nativa da América do Sul, e difundida por todo o Brasil, a mandioquinha é fonte de carboidratos naturais que, além de secar e suavizar o corpo da cerveja, intensifica as notas “terrosas” frequentemente presentes em uma Saison. A mandioquinha, por ser constituída quase que inteiramente por carboidratos naturais fermentáveis, substitui com muita elegância o açúcar que tradicionalmente é incorporado pelos cervejeiros belgas em suas receitas, a fim de obter um final mais seco.
Lá do Amapá surge a inspiração para produção de cervejas que levam em suas receitas o gengibre e o chocolate. Chamadas de Neguinha e Marabaixo, produzidas por uma pequena cervejaria da região( ainda em processo de legalização dos produtos pelo Mapa) as nova bebidas carregam o traço forte da cultura local.
Neguinha é uma cerveja do estilo dunkel, uma homenagem ao povo negro do Amapá, usa malte de chocolate, trigo e notas de café na composição. Uma homenagem a Macapá, a cerveja “Marabaixo” é do estilo witbier, com cascas de laranja, semente de coentro e a raiz de gengibre.