A arte da fermentação e a identidade do território

Estudos apontam que cachaças produzidas em determinadas regiões do Brasil apresentam perfis químicos e uma digital particulares do produto

CAURÉ BARBOSA PORTUGAL
Crédito Imagens: Cauré Barbosa Portugal

Mais do que um mero destilado, a cachaça é a bebida icônica brasileira, com peculiaridades que condensam uma multiplicidade de fatores geográficos, culturais e históricos. Muitos se esquecem, contudo, que sua essência advém primariamente da boa qualidade da matéria-prima e do próprio processo fermentativo.

A cachaça é produzida em praticamente todas as regiões do território brasileiro, tanto em escala industrial como de forma artesanal. Normalmente, trabalham-se com ciclos fermentativos que duram entre 18 e 24 horas, com adição de caldo diluído fresco (mosto) ao fermento remanescente (pé-de-cuba). Tais peculiaridades implicam em um influxo constante de novos microrganismos aos tanques de fermentação, criando uma complexa dinâmica de populações no sistema.

Fermento caipira

O uso de fermentações espontâneas para a produção de cachaça ainda é comum entre pequenos produtores, sendo que o processo consiste em fazer com que leveduras fermentadoras nativas possam emergir durante o processo. Diversas práticas de elaboração do pé-de-cuba são adotadas, mas normalmente inicia-se o processo com caldo diluído e eventual adição de suplementos (farelo de arroz, soja, milho etc.), o conhecido “fermento caipira”. É também frequente a adição de suco de limão para redução do pH durante a elaboração do pé-de-cuba para dificultar o crescimento de bactérias acéticas e lácticas normalmente presentes no meio. A adição de caldo fresco é feita diariamente, incrementando a concentração de sólidos solúveis de forma gradual, um processo que pode durar de uma a duas semanas, dependendo da metodologia adotada. Apesar de ser um procedimento artesanal, a elaboração do “fermento caipira” nada mais é do que um processo de seleção natural daquelas leveduras mais aptas a enfrentarem as condições estressantes e transformarem os açúcares do meio em etanol e gás carbônico, além de diversos compostos aromáticos secundários que constituirão o bouquet da bebida.

O acompanhamento de uma dessas fermentações espontâneas revela que distintas espécies de levedura chegam a participar ativamente durante todo o processo. Nesses microecossitemas, a sobreposição de cada espécie em diferentes fases é modulada por fatores seletivos como altas concentrações de açúcares (estresse osmótico), competição por nutrientes e pelos crescentes níveis de etanol no meio. Algumas leveduras não são boas fermentadoras e podem ser mais sensíveis ao etanol, mas atuam nas etapas iniciais e contribuem com compostos aromáticos que aumentarão a complexidade organolética da cachaça.

Quando as boas práticas de produção são rigorosamente aplicadas, tal diversidade microbiológica está diretamente correlacionada com a impressão de características aromáticas positivas, originando, por exemplo, cachaças de caráter frutado, cítrico e floral. Quando esses cuidados são deixados de lado, os destilados tendem a apresentar defeitos organoléticos evidentes, principalmente caracterizados por aromas vegetais, avinagrados e a solvente, além da sensação de ardência em boca.

Vale salientar que tal equilíbrio pode ser diretamente afetado pelas recentes mudanças do clima. A ocorrência de anomalias climáticas por períodos prolongados (altas temperaturas, concentração de dióxido de carbono e secas prolongadas) pode afetar o equilíbrio das populações de microrganismos associados à planta e, como
consequência, dar origem a mostos de baixa qualidade e com baixos teores de nitrogênio assimilável.

Um exemplo desse tipo de fenômeno ocorreu durante a safra de 2014, que se caracterizou por fortes anomalias de precipitação e de temperaturas máximas no Estado de São Paulo e em outras regiões, propiciando matéria-prima de má qualidade e fermentações lentas. Além dos baixos níveis de nitrogênio assimilável – essencial para o crescimento das leveduras, essas fermentações estagnadas estão fatalmente associadas a níveis mais elevados de açúcares residuais, permitindo a proliferação de bactérias e leveduras contaminantes que podem dar origem a subprodutos indesejáveis ou levar à perda direta de grandes volumes de produção.

Os fatores edafoclimáticos estão fortemente correlacionados com os índices de diversidade nesses microecossistemas fermentativos e nota-se que alterações drásticas fatalmente conduzem à dominância de leveduras contaminantes no processo.

Territórios para a cachaça

Em um estudo recente, comprovamos que a proliferação indesejável de algumas leveduras não-Saccharomyces durante a fermentação pode dar origem a destilados com concentrações elevadas de compostos indesejáveis ou contaminantes, como ácido acético, metanol, furfural e carbamato de etila. Isto ficou evidente quando conduzimos fermentações controladas com cada levedura selvagem individualmente. Por outro lado, quando simulamos uma fermentação utilizando uma mistura das principais espécies isoladas a partir de um processo natural, o produto obtido era harmônico e com características organoléticas diferenciadas em comparação com destilados obtidos a partir de fermento comercial. Portanto, em processos controlados, maiores índices de diversidade são inversamente proporcionais às possibilidades de dominância de leveduras potencialmente contaminantes, resultando em fermentações equilibradas e que possibilitam a obtenção de produtos mais complexos e com composição aromática diferenciada.

Esta ideia está intimamente associada ao conceito de território para cachaça. Estudos recentes evidenciam que as cachaças produzidas em determinadas regiões do Brasil apresentam perfis químicos particulares, evidenciando que, além das características geográficas de uma determinada região, as populações de microrganismos nativos também conferem uma “digital” muito particular ao produto. Sem dúvidas, estes fatores estabelecem novos horizontes em busca de identidade e tipificação para a cachaça. Além da matéria-prima e da conjunção de fatores geográficos, a fermentação também estabelece um atributo distintivo, constituindo um demarcador definitivo para a caracterização de Indicações Geográficas ou mesmo possibilitando a diferenciação sensorial de produtos de qualidade.

Cauré Barbosa Portugal
Biólogo, PhD em Enologia pela Universidade de La Rioja (Espanha) e Pós-Doutor pela Universidade de São Paulo. Especialista em Microbiologia de bebidas fermentadas e destiladas, tem desenvolvido estudos em fermentação e controle microbiológico de vinho cerveja e cachaça

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