A partir do aproveitamento integral de resíduos da indústria de vinho, cientistas desenvolveram insumos de alto valor agregado para os ramos alimentício, farmacêutico, de cosmética e de mobiliário. Ingredientes funcionais, corantes naturais e nanocristais de celulose são alguns dos produtos criados por pesquisadores da Embrapa Agroindústria de Alimentos (RJ), que há mais de oito anos estudam soluções para um dos mais nobres resíduos industriais: o bagaço da uva.
O processo de aproveitamento integral dos resíduos da produção de vinhos, espumantes e sucos de uva pode ser implantado na linha de produção industrial com equipamentos simples e de baixo custo. Inclui em sua primeira etapa a extração de compostos antioxidantes (compostos fenólicos incluindo as antocianinas) da casca da uva, sem as sementes.
Como a presença desses compostos é abundante, esse processo resulta em ingredientes funcionais e corantes naturais de alta qualidade. Em seguida, pode se realizar um processo simples de extração aquosa a quente de fibras alimentares, que ainda carregam compostos antioxidantes em sua estrutura, resultando em um ingrediente rico em fibras antioxidantes.
Semente de uva vira óleo cosmético
Da semente da uva, é extraído um óleo de grande valor cosmético. A torta restante, rica em lignina, pode ser utilizada na fabricação de mobiliários ou na geração de energia e, embora possua um menor teor de fibras, pode ainda ser submetida a uma extração aquosa para obtenção de extratos ricos em fibras alimentares nobres e compostos fenólicos. Para os testes, a equipe de pesquisa da Embrapa realizou diversas análises para garantir a segurança do consumo dos bagaços de uva e seus coprodutos.
A produção da indústria vinícola resulta em toneladas de material vegetal processado, que impactam o meio ambiente. Dados estimados indicam que atualmente somente 3% do resíduo da indústria vinícola passa por um processo de aproveitamento. O bagaço é o principal tipo de resíduo, representando entre 20% e 30% do peso de toda uva processada. É um subproduto importante, rico em fibras alimentares e com uma relevante concentração de compostos antioxidantes, que combatem os radicais livres do organismo, prevenindo o envelhecimento e o surgimento de inúmeras doenças crônicas e degenerativas.
Contudo, o bagaço da uva ainda é tratado como um produto de baixo valor econômico, utilizado normalmente como adubo na plantação, ração animal ou então incinerado. “O nosso maior desafio é convencer o empresário a utilizar os resíduos da indústria vinícola para um fim mais nobre, ou seja, aproveitar seus valiosos compostos bioativos para obter produtos de maior valor agregado”, afirma Renata Tonon, pesquisadora da Embrapa Agroindústria de Alimentos e líder de um projeto que busca o aproveitamento dos resíduos das indústrias vinícolas do Vale do Rio São Francisco, para obtenção de ingredientes e alimentos com alto valor agregado.
Atualmente, o Brasil está em 17º lugar na produção de vinho no mundo, com a produção estimada em mais de um milhão de toneladas por ano. A produção brasileira de uva se concentra majoritariamente no Sul do País, principalmente no Rio Grande do Sul. Contudo, nas últimas décadas essa produção tem se expandido para outras localidades, como a região do Submédio do Vale do Rio São Francisco, em Pernambuco, já que algumas variedades de uva se adaptam bem a climas quentes.
Bagaço de uva é fonte de fibras antioxidantes
Desde 2010, pesquisadores da Embrapa Agroindústria de Alimentos buscam soluções para o aproveitamento dos resíduos da indústria vinícola, em parceria com as Unidades de Pesquisa da Embrapa: Uva e Vinho (RS) e Semiárido (PE). Composta por uma equipe de mais 15 pesquisadores e técnicos da Empresa, a pesquisa vem aprofundando a análise das características desses resíduos agroindustriais, proveniente de diversas uvas produzidas no País. Agora, chegaram a um consenso: independentemente da variedade da uva, não há variação significativa nos resultados para a obtenção desses ingredientes funcionais de alto valor agregado.
“A ideia inicial era a recuperação de compostos fenólicos, que são substâncias com comprovado poder antioxidante e estão presentes em grande quantidade nas cascas e sementes da uva, mesmo após o processo de fermentação ocorrido durante a produção de vinho tinto. As antocianinas são a principal classe de fenólicos presentes nas uvas tintas, sendo responsáveis por sua coloração roxa típica”, explica Lourdes Cabral, pesquisadora da Embrapa Agroindústria de Alimentos que coordenou o primeiro projeto voltado ao aproveitamento dos resíduos das indústrias vinícolas do Sul do País.
Aditivos naturais substituem sintéticos
“Existe atualmente uma tendência de uso de aditivos naturais, uma vez que os sintéticos vêm apresentando restrições devido a possíveis efeitos tóxicos prejudiciais à saúde, o que tem incentivado as pesquisas voltadas à obtenção de corantes e antioxidantes naturais. Algumas indústrias de ingredientes já comercializam corantes à base de antocianinas, obtidos a partir de matérias-primas vegetais”, conta Renata Tonon.
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“Em uma fase mais recente da pesquisa, a equipe verificou que, além de rico em compostos antioxidantes, o bagaço de uva fornece fibras solúveis funcionais em grande quantidade”, conta Caroline Mellinger, pesquisadora do Laboratório de Bioquímica da Embrapa Agroindústria de Alimentos.
Os benefícios para a saúde relacionados ao consumo de fibras já são conhecidos: redução de doença cardiovascular, prevenção de diabetes, redução da absorção de glicose, regulação do trânsito gastrointestinal e redução do colesterol sanguíneo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda um consumo diário entre 27 e 40 gramas para um adulto. Uma forma de aumentar o consumo da população seria utilizar as fibras como ingrediente ou insumo na indústria de alimentos ou como suplemento alimentar.
Dez vezes mais fibras que as farinhas atuais
O processo desenvolvido na Embrapa consegue disponibilizar um ingrediente de alta qualidade, com uma quantidade dez vezes maior de fibras alimentares que as farinhas de uva encontradas no mercado. Testes realizados no Laboratório de Bioacessibilidade da Embrapa Agroindústria de Alimentos em um modelo estático de digestão mostraram que a farinha bruta, obtida das cascas de uva, pode ser usada como um suplemento destinado ao público que deseja obter os benefícios das fibras insolúveis. “As fibras solúveis não são muito desprendidas do produto no trato gastrointestinal. Já as fibras antioxidantes, quando recuperadas do bagaço, são 100% desprendidas do alimento e podem atuar como fibras solúveis, que são consideradas mais nobres por terem impacto na redução de risco de doenças metabólicas”, explica Mellinger.
Para complementar o estudo, já foram iniciados estudos pré-clínicos no Departamento de Farmacologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), liderados pela professora Maria Fernanda Werner. O teste in vivo pretende investigar os mecanismos digestivos acionados com a ingestão da farinha integral e do ingrediente, rico em fibras antioxidantes, e orientar quanto ao seu consumo.
Alto valor de mercado
Além do aspecto nutricional, há que se considerar a importância comercial desse produto. Os suplementos à base de fibras alimentares são vendidos no varejo a um preço elevado, chegando a custar 350 reais o quilo. As matérias-primas para a produção desses suplementos são majoritariamente produzidas no exterior e processadas por grandes empresas. “Desenvolver e viabilizar insumos nacionais de alta qualidade e a baixo custo representa uma inovação no mercado, que pode contribuir para ampliar o acesso da população a esse tipo produto”, afirma Mellinger.
Esse ingrediente funcional já foi submetido à avaliação de consumidores. Teste de aceitação de um iogurte natural adicionado do extrato rico em fibras foi realizado com 130 consumidores no Laboratório de Análises Sensoriais e Instrumentais da Embrapa Agroindústria de Alimentos. “O produto foi considerado ótimo ou bom por 90% dos participantes da pesquisa, sendo que 93% indicaram achar uma boa ou ótima ideia adicionar fibras antioxidantes a um produto”, afirma a bióloga Carolina Beres, que realizou a pesquisa como parte de seu doutoramento na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com a Embrapa.
Produtos multifuncionais
O extrato em pó proveniente do bagaço de uva pode ser considerado um insumo agroindustrial com grande potencial funcional. Para avaliar a sua funcionalidade, a pesquisadora da Embrapa Agroindústria de Alimentos Karina Olbrich, em parceria com a professora Kátia Sivieri, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade Estadual de São Paulo “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), desenvolveu um estudo para analisar o impacto do consumo de uma bebida de leite caprino adicionada do extrato e suco de uva sobre a composição e a atividade da microbiota intestinal humana. O teste in vitro ocorreu com o uso de um equipamento simulador do ecossistema microbiano intestinal humano.
Os resultados observados nesse estudo demonstraram que as bebidas probióticas de leite de cabra enriquecidas com extrato de uva continham altas quantidades de fibra alimentar e compostos fenólicos, que são considerados biologicamente ativos. A análise da composição e da atividade metabólica da microbiota intestinal simulada in vitro indicou que o consumo dessa bebida enriquecida com o extrato de uva pode trazer benefícios para a saúde.
“A bebida promoveu um aumento substancial de ácidos graxos de cadeia curta, muito benéficos à saúde do intestino e que favorecem o controle de microrganismos causadores de doenças, reduzindo o pH intestinal”, conta Olbrich, que trabalha no desenvolvimento de produtos lácteos caprinos com potencial funcional.
Também foi observado aumento da população intestinal de bactérias como lactobacilos e bifidobactérias, que têm efeito positivo para a saúde. Por essas diversas funcionalidades, a bebida enriquecida com extrato de uva pode ser considerada um produto multifuncional. E há ainda mais uma vantagem: “Agrega-se funcionalidade e cor naturalmente, dispensando o uso de corantes artificiais”, completa a cientista.
O consumo de produtos derivados de leite de cabra pode ser uma boa opção para a produção de alimentos funcionais, particularmente para indivíduos que não podem ingerir produtos lácteos bovinos devido a alergias proteicas. A bebida láctea fermentada probiótica adicionada de suco e extrato do bagaço de uva foi avaliada sensorialmente por 112 consumidores potenciais na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp, em Araraquara. O teste de aceitabilidade indicou que a bebida obteve aprovação para todos os atributos sensoriais avaliados.
Nanocristais incorporados em filmes e embalagens
Pesquisa realizada na Universidade do Minho, em Portugal, em parceria com a Embrapa Agroindústria de Alimentos e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), gerou resultados promissores na extração de nanocristais de celulose a partir do bagaço de uva. “Diversos trabalhos vêm relatando bons resultados no uso de nanocristais de celulose como reforço de embalagens e filmes poliméricos biodegradáveis”, contam os pesquisadores da Embrapa Otniel Freitas e Lourdes Cabral.
As nanoestruturas de celulose são altamente cristalinas e com propriedades interessantes, tais como: baixa densidade, reatividade superficial, alta relação de aspecto e área de superfície, alta biocompatibilidade e biodegradabilidade. Segundo o estudo Market and Market (2018), prevê-se que o mercado mundial de nanocelulose atinja 250 milhões de dólares até 2019. A crescente demanda e o uso em novas aplicações têm impulsionado os pesquisadores e a indústria a explorar ainda mais o seu uso.