Leveduras não convencionais: inovação no setor cervejeiro

Cervejeiros estão encontrando novos caminhos para aplicação e benefícios das leveduras não convencionais no processo de fermentação

Cauré Portugal e Rafael Basso

Há mais de 5.000 anos os povos da Mesopotâmia e do Antigo Egito já elaboravam algum tipo de bebida alcoólica semelhante à cerveja. Os grãos de cevada acidentalmente umedecidos e germinados davam origem a um produto menos perecível e mais adocicado, formando a noção incipiente daquilo que hoje conhecemos como malte de cevada. A partir daí o que originava a bebida com certo teor alcoólico, eram fermentações espontâneas e não controladas, iniciadas por microrganismos do ambiente ou carreados pelo ar.

Já que as leveduras Saccharomyces naturalmente tendem a dominar esses processos “selvagens”, passaram a ser isoladas intuitivamente em distintas regiões do globo ao longo da intrincada história do homem com os alimentos. De fato, essas fermentações “selvagens” ainda são utilizadas para a elaboração das especialíssimas lambics belgas, cujo “terroir microbiano” restringe-se à região de Pajottenland.

A crescente demanda por produtos inovadores e diferenciados tem impulsionado muitos especialistas na busca por outros tipos de leveduras não-Saccharomyces para o desenvolvimento de cervejas especiais. Apesar de normalmente apresentarem baixo rendimento fermentativo e de serem mais sensíveis ao etanol, muitas dessas leveduras prometem imprimir características distintivas de sabor e aroma. Embora muitas delas já tenham sido caracterizadas como contaminantes de processos fermentativos e potenciais alterantes em bebidas fermentadas, algumas espécies despontam hoje como valiosas produtoras de ésteres aromáticos em processos monitorados e bem controlados.

A possibilidade de exploração desses microrganismos pode ser bastante variada. Dependendo do produto que se deseja obter, podem ser utilizados tanto como inóculos puros no lugar de leveduras convencionais, como em co-inoculação (diferentes microrganismos adicionados ao mesmo tempo) ou em inoculação sequencial. De fato, essas distintas formas de sucessão entre distintas espécies de leveduras acontecem naturalmente em cervejas elaboradas a partir de fermentações espontâneas, como é o caso das lambics e gueuzes belgas e das Coolship Ales americanas.

Certas leveduras não convencionais podem apresentar maior plasticidade metabólica em comparação com as tradicionais Saccharomyces, o que vem despertando o interesse para sua utilizaçãoem fermentações controladas para produção de cervejas especiais. As principais abordagens nesse sentido são incrementar as características organoléticas da bebida por métodos de bioaromatização, produzir cervejas com baixa graduação alcoólica ou baixo teor calórico sem subtrair aromas e sabor.

Biotecnologia em prol da inovação

Velhos métodos, novas ideias
Algo que no passado pareceria tão óbvio como utilizar barris de madeira para a maturação de cervejas após sua elaboração, hoje desponta como uma forma de diferenciação e inovação. Além de contribuir com a complexidade de aromas e sabores provenientes da madeira, tal prática possibilita a atuação de certas leveduras e bactérias naturalmente alojadas nos poros da madeira e que acabam por conduzir um novo processo fermentativo. A própria refermentação em garrafa – primariamente apenas uma prática para promover a carbonatação – se realizada com leveduras não convencionais, pode também contribuir para a incorporação de compostos aromáticos relevantes na qualidade organolética da bebida.

Bioaromatização (‘Bioflavoring’)
A ideia de bioaromatização consiste na possibilidade de sintetizar e transformar compostos aromáticos estritamente por vias biológicas. Quando se considera o emprego de leveduras não convencionais, as possibilidades de modular a fermentação e o produto final podem ser as mais variáveis. Esses microrganismos podem ser utilizados tanto como inóculos puros na fermentação primária, como também em co-inoculação com Saccharomyces cerevisiae. A utilização de organismos geneticamente modificados também é uma alternativa, assim como a aplicação de enzimas produzidas por certos microrganismos.

A espécie Pichiakluyveri, por exemplo, tem demonstrado bons resultados quando inoculada após uma fermentação primaria com S. cerevisiae. Em combinação com distintas variedades de lúpulo, essas fermentações prometem incrementar os teores de acetato de isoamilo e acetato de isobutilo, compostos aromáticos de relevância na cerveja. Leveduras do gênero Williopsis (= Cyberlindnera) também são fortes candidatas para abordagens em que se almeja intensificar o caráter frutado da cerveja, já que são capazes de produzir boas concentrações de ésteres de acetato.

A atividade enzimática glicosidase é um outro perfil metabólico encontrado em cepas de Dekkera/Brettanomycese de Wickerhamomycesanomaluse de potencial aplicação em processos cervejeiros. Por se tratar de uma enzima cuja ação parece ser inibida em presença de açúcares, mas potencializada em presença de etanol, a inoculação sequencial tardia ou mesmo a refermentação em garrafa também podem ser abordagens interessantes para a bioaromatização de cervejas especiais. Fermentações mistas com Torulasporadelbrueckii, por outro lado, têm revelado uma otimização no aproveitamento de compostos nitrogenados em correlação com teores mais elevados de compostos aromáticos no produto final e que contribuem com o caráter frutado, floral e anisado da cerveja.

Tendências: Low alcohol, low calorie e bebidas funcionais
Sem dúvidas, a tendência de mercado mais imediata é a de cervejas com baixo teor alcoólico e que ainda exibam uma qualidade e complexidade aromática superiores. O emprego de leveduras não-Saccharomyces surge como uma possibilidade inovadora e atrativa nesse sentido, com a vantagem de evitar a extração involuntária de compostos aromáticos quando se realiza a retirada do etanol após a fermentação por destilação, osmose reversa ou diálise. Desta forma, é possível a obtenção de cervejas com baixo teor alcoólico pelo uso de leveduras que sejam incapazes de degradar maltose e maltotriose, ou que apresentem um aparato enzimático específico. Uma das espécies mais promissoras nesse sentido é Torulasporadelbrueckii, com a qual já foi possível obter cervejas com teor alcoólico inferior a 1 % (v/v) e um rico caráter frutado.

A produção de cervejas ‘lowalcohol’pode ser viabilizada por novas investidas em busca de leveduras resistentes a baixas temperaturas e através de processos por contato a frio (baixas temperaturas e longos períodos de fermentação). Uma vez que a célula passa a operar a partir de metabolismo basal em mostos de baixa densidade, há significativa produção de compostos voláteis aromáticos e ínfimas concentrações de etanol no produto final.

Com os crescentes problemas de obesidade e novas tendências em termos de alimentação, a busca por cervejas ‘lowcalorie’também vem despontando entre as cervejarias interessadas em inovar. A principal aposta nesse sentido é a utilização de leveduras em consonância com processos específicos que levem a altas taxas de atenuação e mínima concentração de açúcares no produto final. Dekkera/Brettanomyces, por exemplo, é capaz de hidrolisar e metabolizar açúcares complexos e dar origem a cervejas de baixo teor calórico e ligeiramente mais alcoólicas.

Algo menos explorado no setor, mas que já vem suscitando interesse de alguns produtores, é a ideia de cervejas funcionais. O conceito de cerveja funcional está necessariamente associado a bebidas de baixo teor alcoólico e com uma matriz substancial de fibras, vitaminas, minerais e polifenóis.

Trata-se de uma abordagem de processo e de mercado ainda pouco explorada, mas que promete ser mais um forte ponto de inflexão em busca de produtos diferenciados e inovadores.

As mais cotadas

• Dekkera/Brettanomyces
Algumas espécies dos gêneros Dekkera/Brettanomyces são velhas conhecidas muito cobiçadas do âmbito cervejeiro (apesar de serem inimigas no 1 de vinhos envelhecidos em barris de carvalho).

Figura 2 – Colônias e células de Dekkera bruxellensis
Fonte: PITT, J.I. & HOCKING, A. D. 2009
FungiandFoodSpoilage. New York: Springer

Isoladas pela primeira vez na década de 1970, hoje são as leveduras não convencionais mais empregadas para a elaboração de sours e krieks. Mais recentemente, descobriu-se que eram também uma das principais protagonistas na complexa “assembleia de microrganismos” que atua em um processo de produção de lambics. Hoje sabemos que em elaborações bem cuidadas e controladas, essas leveduras podem contribuir enormemente para a complexidade de aromas frutados e florais da cerveja, além do frescor e acidez característicos conferidos pela particular produção de ácido acético. Um caráter mais rústico e a incorporação de notas animais também não são incomuns nesses casos, mas é preciso discernimento, conhecimento e cuidados especiais para que não se tornem um problema e passem a imprimir características de alteração na cerveja.

As principais espécies em cerveja são Dekkerabruxellensis e Dekkeraanomala, capazes de assimilar uma grande variedade de fontes de carbono (incluindo a dextrose e a celobiose presentes na madeira utilizada para o envelhecimento ou para induzir uma fermentação secundária). Tais habilidades podem ser interessantes ao se desenhar produtos com baixas calorias, já que essas leveduras praticamente eliminarão os açúcares residuais da cerveja. Por outro lado, sua característica peculiar é a produção de etilfenóis a partir de certos ácidos orgânicos que, apesar de serem responsáveis por aromas alterantes em altas concentrações, compõem o caráter único de estilos como BelgianLambic, Gueuze, RedFlanders, German Weizen, Rauchbier, American Coolship Ale, SoureFarmhouse Ale.

Figura 3 – Colônias e células de Wickerhamomyces anomalus (Fonte: PITT, J.I. & HOCKING, A. D. 2009
FungiandFoodSpoilage. New York: Springer).

• Wickerhamomy cesanomalus
Também conhecida como Pichiaanomala ou Hansenulaanomala,esta levedura é capaz de utilizar uma grande variedade de compostos como fonte de energia e operar sob condições extremas de pH, temperatura e pressão osmótica, além de contribuir com a formação de certos álcoois superiores, acetatos e ésteres aromáticos na bebida. Devido a essas habilidades metabólicas tão particulares, esta espécie apresenta-se com grande potencial em processos de inoculação sequencial com S. cerevisiae, tanto com propósitos de bioaromatização quanto na obtenção de cervejas com baixo teor calórico.

Figura 4. Células de Torulaspora delbruecki
(Foto: Barnett, L. <http://www.diark.org/>)

• Torulaspora delbrueckii
Trata-se de uma levedura filogeneticamente próxima a S. cerevisiae e que provavelmente deva estar presente em processos fermentativos ligados à atividade humana há pelo menos 4.000 anos. Com grande capacidade de imprimir aromas frutados, esta espécie provavelmente é a protagonista em fermentações da Bavarian wheatbeer. São organismos que toleram mostos de alta densidade, crescem bem a baixas temperaturas e, curiosamente, necessitam oxigênio para fermentar. São também capazes de metabolizar a maltotriose, além de serem bem tolerantes ao etanol e aos iso-a-ácidos do lúpulo. Tais habilidades indicam um forte potencial para fermentações secundárias na elaboração de cervejas mais robustas e com forte caráter de lúpulo. São consideradas leveduras de interesse também quanto ao perfil aromático que podem conferir à cerveja devido a certas particularidades enzimáticas, imprimindo notas cítricas e um caráter frutado ao paladar.

Em busca de novos horizontes …

A ciência vem trabalhando em prol da qualidade e abrindo novos horizontes para o mundo cervejeiro e diferentes leveduras vêm despontando como alternativas interessantes para a produção de cervejas especiais. O fundamental é ter em mente que o caráter inovador no setor não diz respeito somente a produtos com maior complexidade organolética, mas também à possibilidade de ampliar o leque de metodologias para a obtenção de produtos diversificados em um mercado em expansão. Aliado a isto, os próprios cervejeiros estão reinterpretando tais abordagens e encontrando novos caminhos para a aplicação e benefícios de leveduras não convencionais como ponto-forte do processo. No entanto, a introdução de um novo conceito, uma nova levedura deve ser previamente analisada e estudada em colaboração com especialistas, já que cada microrganismo é único e pode desenvolver diferentes adaptações em contato com novos ambientes. No mais, a revolução cervejeira tupiniquim é uma realidade e vem ganhando cada vez mais adeptos, o que abre caminho para inúmeras possibilidades e experimentações.

Referências

* Esta é uma recopilação do artigo “Could non-Saccharomyces yeasts contribute on innovative brewing fermentations?” (BASSO, R. F., ALCARDE, A. R. & PORTUGAL, C. B. 2016. Food Research International, 86, 112-120).
Cauré Portugal e Rafael Basso

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