A lapidação da qualidade

Como todas as outras bebidas, a cachaça também busca a diversificação de seu portfólio
com a produção de novos blends. O envelhecimento da bebida em tonéis e barris de madeira
é uma opção que desponta como grande oportunidade para as empresas do setor

| LETHICIA CORNIANI & CAURÉ PORTUGAL |

Cachaça, uma bebida genuinamente brasileira e que vem buscando a cada dia aprimorar seus critérios de sofisticação e requinte. Imersa em um cenário de crescente interesse, tanto sensorial como comercial, não é pequeno o número de especialistas e entusiastas ávidos por informação e técnicas para novas experiências com o destilado. O surgimento de novas marcas, assim como o ressurgimento ou reformulação de antigos rótulos, também vem marcando novos horizontes dentro deste mercado cada vez mais aquecido, sendo que produtores e especialistas estão à procura de novos caminhos para lapidar a experiência do consumidor e edificar os atributos de qualidade.

O reconhecimento da cachaça vem aumentando a cada ano e, assim, a busca por identidade e diferenciação tornam-se uma constante. Além da seleção da matéria-prima, dos atributos regionais, das peculiaridades da fermentação e da destilação, a arte do envelhecimento em madeira é um dos pilares na construção da peculiaridade de cada bebida.

A arte do envelhecimento

Nos últimos anos, a técnica orientada de envelhecimento da cachaça vem se tornando uma prática cada vez mais comum, pois o consumidor tem aprimorado seu paladar e procurado por produtos diversificados e de maior valor agregado. Por outro lado, os produtores já passaram a mudar seu ponto de vista, de modo que o tempo e os custos necessários para o armazenamento da cachaça em tonéis de madeira já não são considerados pontos críticos no processo.

A cachaça pode proporcionar uma experiência sensorial ímpar, já que se trata da única bebida no mundo que pode ser envelhecida em distintos tipos de madeira. A tradição de envelhecer o destilado em barris e tonéis fabricados com madeiras brasileiras tem sido muito bem aceita, além de viabilizar um recurso inusitado na arte da coquetelaria em função da grande versatilidade e complexidade de sabores e aromas.

O envelhecimento é uma das etapas finais do processo de produção, podendo conferir características peculiares, aprimorar a qualidade e a aceitação da cachaça. O período de maturação requerido até a estabilização do produto é variável e diversos fatores podem influenciar nesse processo.

Dentre as variáveis mais relevantes para o envelhecimento, deve-se atribuir especial atenção à intensidade da queima do barril, ao número de vezes que este já foi utilizado, à espécie de madeira a ser empregada e aos parâmetros de temperatura e umidade do ambiente de armazenamento. Inúmeras e complexas interações físico-químicas entre a madeira e a cachaça ocorrem no processo de envelhecimento: migração de componentes voláteis e não-voláteis, evolução de compostos fenólicos, oxidação, assim como modificações de coloração e sabor.

O emprego de diferentes madeiras possibilita a lapidação de aromas terciários

Distintas madeiras, muitas nuances

Além do emprego de carvalhos americano e francês, existe a possibilidade da utilização de diversas madeiras brasileiras, incluindo Amburana (ou Cerejeira), Cabreúva (ou Bálsamo), Jequitibá, Amendoim, Grápia, Ipê Roxo, Frejó, Araruva, Castanheira, Grápia, Canela Sassafrás, diferentes espécies de eucalipto e outras madeiras nativas oriundas da Floresta Amazônica.

Atualmente, a grande demanda da arte tanoeira com madeiras brasileiras é reflexo do potencial de aprimoramento das caracteristicas organolépticas da bebida e da ótima alternativa que elas representam no incremento do portifólio dos produtores. A Cabreúva – também conhecida como Bálsamo – é historicamente utilizada na maturação das cachaças mineiras, incorporando descritores aromáticos herbáceos e um típico sabor amargo e apimentado.

A Amburana também é tradicionalmente empregada na maturação de cachaças, distinguindo-se pelo autêntico aroma floral, além de atributos amadeirados e de especiarias (pimenta-rosa) atribuídos à cachaça. O emprego dessas diferentes madeiras possibilita a lapidação de complexos aromas terciários, determinados por certos compostos químicos que podem ser considerados marcadores de envelhecimento e que se correlacionam diretamente com as propriedades organoléticas da bebida.

O tonel ou barril pode ser submetido a diferentes intensidades de queima da madeira, fator que determinará a composição química e organoléptica da cachaça. Certos compostos determinantes de aromas terciários, como furfural e o hidroximetilfurfural, estão diretamente correlacionados com o grau de tostadura e respondem por descritores a amêndoas, caramelo, defumado e tostado.

O tempo de envelhecimento é outro fator que deve ser analisado com cuidado em função do tipo de madeira e do número de reusos. O período de estágio da cachaça pode variar de poucos meses – no caso de barris novos, nos quais nunca houve a extração de compostos químicos e interação com o destilado – ou se extender por décadas, casos em que o produto final poderá ter um valor agregado elevado.

Cada tipo de madeira revela uma composição química diferente, o que irá influenciar na gama e concentração de compostos químicos e, consequentemente, nas caractererísticas organoléticas do produto final. O carvalho americano e o francês são os mais comumente utilizados. As cachaças envelhecidas em carvalho americano são conhecidas por apresentarem aromas marcantes a baunilha e coco; já o carvalho francês confere à cachaça aromas florais e condimentados, além de sabor com notas apimentadas. A utilização de barris de carvalho representa, contudo, um ponto crítico devido ao alto custo de barris novos. Apesar de agregar valor ao produto, a maioria dos produtores opta por barris remanufaturados e já extensivamente utilizados. Nesse caso, a madeira não exibirá todo o potencial de maturação, propiciando a obtenção de cachaças com características organolépticas de menor complexidade.

A legislação brasileira permite ainda a adição de corante caramelo para correção da cor de cachaças envelhecidas, uma abordagem que estabelece uma tênue linha de delimitação entre a prática da padronização e a fraude. Dessa forma, vale salientar a importância dos muitos estudos realizados nos últimos anos, possibilitando a detecção e quantificação daqueles compostos químicos considerados marcadores de envelhecimento e a discriminação entre produtos adulterados e cachaças de qualidade.

A notória importância do processo de envelhecimento para a cachaça nos faz refletir também sobre a necessidade de aprofundamento em pesquisas, permitindo uma maior aproximação entre as legislações vigentes e “nova cara” do destilado brasileiro. Avanços nesse sentido já vêm sendo discutidos, no entanto, percebe-se ainda um distanciamento entre os interesses das agências fiscalizadoras, dos produtores e das autoridades envolvidas.

Envelhecer ou Inovar?

No mundo dos destilados, a exclusividade não é uma novidade, diversas marcas utilizam muito bem essa estratégia lançando no mercado edições limitadas que passam a ser objeto de desejo de muitos consumidores. Desenvolver um produto exclusivo com características únicas é o desafio de produtores de bebidas no mundo, e no caso da cachaça não é diferente. Nesse sentido, a ciência vem trabalhando em prol da qualidade e abrindo novos horizontes para a cachaça e para a obtenção de diferentes blends que despontam como alternativa muito atrativas. Os blends são misturas de cachaças brancas e/ou envelhecidas em distintos tipos de madeiras, em proporções variadas, proporcionando características organoléticas mais complexas, inusitadas e, consequentemente, agregando maior valor ao produto final.

O caráter inovador no setor não diz respeito somente a produtos com maior complexidade, mas também à possibilidade de ampliar o leque de pos-sibilidades para a obtenção de produtos diversificados em um mercado em expansão. Aliado a isto, os produtores de cachaça estão reinterpretando tais abordagens e encontrando novos caminhos para o desenvolvimento de blends como ponto-forte do processo. No entanto, a confecção dessa nova “mistura” deve ser cuidadosamente estudada, uma vez que cada blend será uma bebida única.

Lethicia Corniani
Mestra em Ciência e Tecnologia de Alimentos
Cauré Portugal
Doutor em Enologia e Ciência de Alimentos
Smart Yeast Pesquisa e Desenvolvimento – Piracicaba – SP

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